- 19/06/2020
Com apoio profissional e familiar, é possível retomar a vida
A realidade da pessoa com queimadura no Brasil ainda não é a ideal. Muitos pacientes não recebem ou não aceitam acompanhamento psicológico adequado e se sentem marginalizados e discriminados, afetando a relação em casa, com os amigos, na escola, na rua e até no mercado de trabalho. Por isso, toda a atenção e amparo são essenciais.
Muitos desses pacientes ficam com sequelas físicas e a dor, conforme estudos, pode modificar comportamentos, humores e até traços de personalidade, gerando agressividade, depressão e doenças psicológicas. Com isso, percebe-se a necessidade de uma equipe multiprofissional desde o primeiro atendimento. O psicólogo, por exemplo, pode ajudar, acompanhar, apoiar o paciente em sua hospitalização e, principalmente, após receber alta médica.
Desse modo, conforme explica a psicóloga e membro da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ), Iole Dielle de Carvalho, o tratamento emocional de um paciente queimado é pouco procurado, a maioria dos pacientes nem sabe que precisa, o que complica ainda mais a questão. “Trabalho em um hospital público no Rio de Janeiro, referência em tratamento de queimaduras, para pessoas de baixa renda. A busca pelo atendimento, em sua maioria, é voltada para o tratamento das sequelas físicas, sendo que o tratamento psicológico é fundamental também”, afirma.
A especialista explica que o trabalho com a família do paciente também é muito importante, em especial com os acompanhantes durante a internação. “Esses familiares, normalmente, são mães que carregam culpa gerada por si e pela sociedade. Muitas são reativas no primeiro momento, com medo de serem julgadas por nós também. O acolhimento é essencial e estabelece vínculos que facilitam no trabalho, também, com o paciente”, observa.
Em relação à autoaceitação do paciente, Iole Dielle destaca que a psicoterapia colabora nesse processo, mas ele é totalmente individual, não há como mensurar um tempo para os resultados. “Esse processo é associado à personalidade do paciente, ao seu grau de tolerância, a frustrações, ao suporte emocional recebido da família e sua rede de apoio", detalha.
Apoio e amparo familiar
Davi Amorim, 14 anos, sofreu um acidente com queimaduras aos 5 anos, quando a vizinha deixou um lixo no quintal, com um spray aerossol e ele pensou em colocar fogo no lixo. O aerossol explodiu e pegou na blusa dele, ocasionando queimadura de terceiro grau, com 33% de extensão. A mãe Érica conta que ficou um mês e meio no hospital, onde o menino passou por cirurgia e enxertos, tornando o momento muito doloroso. "A dor é dele, é nossa, todo mundo sente. Demos todo apoio para ele, acolhemos em todos os momentos. Na escola os amiguinhos faziam bullying, colocavam apelidos e ele chegava em casa chorando, agressivo. Mas a gente conversava muito com ele, que foi se aceitando e hoje ele é muito confiante. Ele joga bola na rua sem blusa, se aceita e se respeita como ele é”, conta a mãe.
Davi precisará fazer mais cirurgias devido a várias cicatrizes que ainda tem, mas é um processo que estão preparados a passar juntos. “Pai e mãe, na hora que acontece, se sentem como se estivessem no fim do mundo. Mas a gente se une, confia em Deus e segue em frente. Meu filho nos ensina a cada dia. Passamos por muitos momentos complicados, principalmente na escola, mas meu filho é o primeiro a mostrar que entendeu que ele é amado, que o acidente não é o fim e estamos sempre presentes”, explica Erica.
Suzana de Souza, 38 anos, também se queimou quando era criança, aos 7 anos. O irmão de um vizinho despelava porco usando álcool combustível. Ao riscar o fósforo, o galão pegou fogo e o rapaz jogou na direção onde várias crianças estavam. Ela e uma prima foram as vítimas.
“Eu fiquei internada durante oito meses e 11 dias. Foram dias longos e tensos, pois devido ao risco de infecção, ter acompanhante era inviável. Ou seja, fiquei todo esse tempo internada sem a presença de minha mãe. Ela me visitava todos os dias permitidos e o nosso único contato era através da janela de onde se encontrava a Unidade de Queimados”, lembra.
Suzana conta que só foi ter consciência do quanto tinha mudado quando retornou para a escola, sendo um dos períodos mais difíceis de enfrentar. “Voltar à vida social é muito complicado para quem teve a aparência mudada por sequelas de queimaduras de 3º grau. Nessa época, sofri muito bullying na escola, com olhares e apelidos. Mas resolvi superar. Certamente, hoje lido melhor com as cicatrizes. Não direi que adoro minhas cicatrizes, mas vivo uma vida comum, como qualquer outra pessoa, busco não me privar de nada. Seguramente, esse processo de superação foi possível com muita ajuda terapêutica, tratamento esse que faço até hoje”, destaca.
Dificuldades no mercado de trabalho.
Suzana é agente administrativo do Conselho Regional de Enfermagem do Distrito Federal. Formada em Gestão Pública, até passar no concurso público, a busca pelo primeiro emprego foi árdua, conseguindo entrar no mercado de trabalho apenas com 27 anos. “As negativas foram muitas. Não há políticas públicas para o sequelado de queimadura se reinserir no mercado de trabalho. Muitos recorrem a aposentadoria, pelas dificuldades. Desejo que o sobrevivente de queimaduras ganhe visibilidade, para que tenhamos políticas públicas para melhorar o retorno à sociedade”, ressalta. Ela almeja mais investimentos no tratamento do paciente queimado na pós-alta, pois ajudaria muito no processo de autoestima, de ressignificação do trauma, refletindo, assim, nos outros setores da vida. |
Em março deste ano, o presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras, José Adorno, se reuniu com o presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Prevenção de Queimaduras e Atenção Global ao Paciente Queimado, o deputado federal Roberto de Lucena (Podemos/SP), e com a assessora da Frente, Larissa Melo, para debater uma linha de atuação emergencial para os pacientes queimados. O primeiro ponto analisado foi em relação à possibilidade de o paciente ser visto como portador de necessidade especial e fazer com que ele tenha todos os benefícios previstos em lei. “Podemos pré-definir situações e critérios que enquadrem o queimado nesta condição. Mas precisamos criar uma equipe multidisciplinar para avaliar particularidades e excepcionalidades. Alguns pacientes ficam com sequelas físicas de grande repercussão psicológica. Ou, devido à extensão e região anatômica da cicatriz, ele sofrerá discriminação e estigma, dificultando encontrar um emprego e readaptação biopsicossocial”, explica José Adorno. |