- 07/07/2025
O Junho Laranja acabou, mas deixou uma mensagem para reflexão que não tem data de validade: que consequências a violência doméstica deixa na vítima, principalmente nos casos relacionados a queimaduras?
Batemos um papo com a psicóloga e vice-presidente da SBQ regional São Paulo, Sandra Antonia Fanucci Moraes de Almeida, que destaca a necessidade de um acolhimento integral à vítima, ainda mais após o tratamento.
SBQ- Quais as consequências de uma sobrevivente de violência doméstica que foi agredida com o uso de elementos que provocaram queimaduras?
A queimadura, por si, já é uma grande repercussão emocional na vida de qualquer pessoa. É uma macrodimensão de danos, danos emocionais, físicos e eu vou dizer até psíquicos. Quando a questão envolve violência doméstica, a repercussão é muito pior, porque numa violência doméstica você passa por um processo em que você é submetida a uma força primitiva. Vem para rememorar os primórdios da civilização, quando as mulheres eram queimadas vivas nas praças e as pessoas ainda eram obrigadas a assistir. Porque a dominação era muito grande em relação a tudo isso. O que eu tenho a dizer em relação à violência doméstica via queimaduras é que nos traz ao primitivo do homem aquilo que nós temos de mais grotesco, de menos social, de menos civilizado e acima de tudo aquilo que destitui. Ele não deixa só marca na face, no ombro, no braço, na perna, no abdômen. Ele deixa uma marca na alma, uma marca como o homem marca o gado, para dizer para todo mundo que aquele gado é dele. Então isso é terrível.
SBQ- Com ajudar essas vítimas?
O nosso desafio é ter um trabalho multiprofissional que envolva o médico de referência de confiança; a enfermagem respeitosa, querida, carinhosa, cuidadosa; o serviço social que vai buscar a rede de apoio para essa vítima, tanto durante o período em que ela está internada, como depois, para onde ela volta? Com quem ela vai contar e como é que vai ser esse trabalho com ela no seu dia a dia? O que eu acho que é muito interessante são os ambulatórios do Centro de Tratamento de Queimadura. Os retornos que os pacientes fazem para que toda equipe acompanhe a evolução da recuperação física, mental, profissional, social, emocional, afetiva, amorosa. Então eu penso que o retorno ambulatorial possa ser um grande diferencial nesse atendimento, porque nós também temos uma precariedade grande de rede de apoio pós alta dos Centros de Tratamento de Queimaduras e é necessário ter toda uma delicadeza com esse momento, porque também as mulheres são julgadas. Muitas pessoas pergunam “Será que ela era uma boa mulher, uma boa esposa, uma boa dona de casa? No que que ela provocou esse homem para que esse homem pudesse ser tão agressivo, tão violento?”
SBQ- O Sistema Único de Saúde oferece esse atendimento?
Temos muito pouca coisa oferecida pelo SUS. Aliás, a Sociedade Brasileira de Queimaduras está às voltas com isso, buscando em todos os estados do país formas de viabilizar um SUS mais potente, mais capaz, mais preparado, mais equipado para acolher todas essas vítimas.
A violência doméstica não se extingue simplesmente porque o paciente foi acolhido no centro de queimadura, se cuidou e teve uma equipe. Não, a violência e as consequências da violência são intrínsecas ao sujeito. O sujeito que não conseguir se sustentar na sua dor, na sua humilhação e ressignificar todas essas marcas numa escrita positiva, construtiva, indo em busca de se colocar no mundo em palavras, diante de tudo que passou e de tudo como pensa o mundo nessa travessia a ideação suicida é uma porta de sair. Da vida para minimização desta angústia de viver, porque daí não é uma angústia de ser, eles deixam de ser sujeito para serem um objeto com uma angústia de viver, é como se viver continuasse a doer tanto quanto a queimadura na pele.
SBQ- Como deve ser o acompanhamento psicológico das vítimas de queimaduras, independentemente de terem sido vítimas de violência ou não?
Diante de um trauma, cada vez que a gente se vê diante de qualquer significante deste trauma, que pode ser passar diante do fogo, que é o mais objetivo, ou diante de um barulho de explosão, ou diante de uma temperatura que muda bruscamente do frio para o calor, ou diante de sons que são só ela que define, como sons que denunciam esse risco é disparado o flashback. Às vezes a pessoa está dormindo, tem um sonho e nesse sonho tem esses significantes e ela acorda desesperada como se de fato estivesse repetindo a cena do trauma. Isto é necessário de cuidado, é necessário de acompanhamento e o tempo do inconsciente não é o nosso tempo de relógio. Resignificar traumas demanda investimento próprio, pessoal, é mexer na própria ferida e ferida dói, né? Então, às vezes o paciente não suporta cuidar disso e é por isso que ele arrasta todas essas sequelas. O flashback é uma sequela terrível e que precisa ser cuidada e tratada.